Lua de Sangue- Quadragésimo Sexto Capítulo

               
    O fogo se alastra pela grama seca, formando enormes labaredas entre mim, Leon e Aglumm.
    As chamas colam em meus dedos como velcro, dançando entre meus dedos enquanto tento controla-las antes que uma nova onda de chamas vindo da garganta de Aglumm se choquem contra mim, cinzas grudam nos fios de meu cabelo e em meu uniforme, apago-as o mais rápido que posso, Aglumm cospe fogo em minha direção, paro-as antes de chegar em meu rosto e em Leon, que está parado bem atrás de mim, as chamas se espalham e formam paredes novamente, minha testa pinga de suor e a fuligem gruda em minha pele, me deixando suja novamente.
    Respiro com dificuldade, meu pulmão se enchendo de fumaça, mesmo não me fazendo nenhum mal, me sinto cansada e ofegante.
    Aglumm ataca com força total e quase não consigo parar o fogo antes de chegar e mim e fazer churrasquinho de Leon, que suspira de alivio por ainda não estar torrado.
    Formo uma bola de fogo e jogo-a para cima, atraindo a atenção de Aglumm.
   -Chega- peço caindo sentado no chão, respirando fundo e fechando meus olhos com força.
    Passo meu braço por meu rosto para tirar a sujeira grudada em minha pele.
    Leon anda até mim em passos pesados, colocando sua mão em meu ombro que subia e descia freneticamente.
   -Vamos dar um tempo- ele anuncia para o dragão -tudo bem?
   -Só cansada- respondo ofegante -muito cansada.
    Ele se senta ao meu lado e eu observo Aglumm levantar voo, fazendo com que or troncos das árvores cedam a força de suas asas, o vento assovia em meus ouvidos e respiro aliviada com o vento gelado batendo em meu rosto, mesmo que só por alguns segundos.
   -Sangue- digo com a voz rouca ao sentir minha garganta queimar -preciso de sangue.
    Leon arqueia as sobrancelhas e me olha confuso.
    Não era para eu precisar de sangue, estando presa na cabeça de Lissa, nada é realmente verdade, eu não precisaria de sangue a não ser que meu corpo estivesse definhando no mundo real.
   -Lissa pode estar em qualquer lugar- ele diz  com os olhos levemente arregalados, posso sentir o medo em sua voz 
    Umedeço meus lábios e afirmo com a cabeça.
   -Tome- ele diz arregaçando  suas manga e estendendo seu pulso na direção de minha boca.
    Mordo-o sem pestanejar, o sangue desce quente e delicioso por minha garganta, caindo direto em meu estômago, aliviando a queimação. Solto o pulso de Leon e sangue escorre dos furos deixados por meus dentes pontudos, pingando na grama seca, minha roupa mancha com o sangue que escorre de minha boca.
    Tento limpar meus lábios com a ponta de meus dedos, mas desisto quando percebo que só estou piorando.
    Sorrio levemente para Leon que me olha aliviado, mas um enjoo faz com que todo o sangue de meu estômago saia por minha boca.
    Me debruço e jogo tudo aos pés de Leon, tusso várias vezes enquanto o sangue rubro se transforma em um líquido branco viscoso saído de meu estômago.
    A queimação retorna e eu me deito em posição fetal, gemendo e choramingando pela dor intensa.
    Leon tenta se aproximar para me ajudar, mas eu sibilo antes mesmo que seus dedos consigam encostar em minha pele, eu rastejo para longe dele, passando até mesmo por cima da poça rubra no chão.
   -Não encoste em mim- sibilo com a voz estranha.
   -Sabine...- ele começa.
   -Não- eu rosno enquanto tentava engatinhar para dentro de casa, passando pelas várias espadas e arcos espalhados pela lateral de minha casa.
    Leon teima e me segue, colocando sua mão em minhas costas, tentando me levantar.
    Ergo minha mão e pego uma adaga de ferro, apontando para Leon que da um passo para trás.
   -Se encostar em mim corto você- ameaço, continuando a cambalear para dentro de casa.
   -Chérie?- a voz de Lissa chama minha atenção, assim como o bater de asas de Aglumm 
   -Não- repito, me arrastando.
    Lissa me ignora e vem até mim, me pegando em seus braços e tirando a lâmina de suas mãos.
    Berro ao sentir minha garganta rasgada.
    Passo meus dedos em meu pescoço a procura de um corte, há sangue, mas não meu.
   -Vou resolver isso- Lissa diz e ouço Leon concordar, enquanto sou colocada em cima de algo macio.
    Passo meus dedos por meu couro cabeludo e pescoço, como uma louca, arrancando parte da pele de meu rosto com minhas unhas, tentando aliviar a dor em minha garganta, mas de nada adianta.
    Leon prende minhas mãos enquanto eu berro de dor.     
   -Já vai acabar- escuto-o dizer enquanto eu me debato com violência, seria capaz de arrancar minha própria língua com os dentes se isso aliviasse o fogo tomando conta de mim -já vai acabar.                                                                             
                                                                        ⛤⛤⛤
 
   -Preciso do corpo dela agora!- grito enquanto corro pelo acampamento em busca de Marie 
    Passo por um grupo de caçadora, derrubando uma garota loura pequena, que grita comigo e eu a xingo.
   -Onde está Marie Anne?- pergunto afobada para Aaron.
   -Caçando- ele diz -o que foi.
   -Preciso ver o corpo de Sabine agora mesmo, tem algo errado Aaron, preciso ver agora- digo -vou ao palácio de Maximus, avise Marie e diga para ela o que está acontecendo, alguém está interferindo no feitiço de conservação dela.
   -Vai ao palácio? Está querendo se matar Lissa?- ele me diz 
   -Ela está morrendo, Aaron- digo agarrando em seu braço com força, olhando em seus olhos -Ela. Está. Morrendo. E eu não vou deixar isso acontecer, então ache Marie Anne e mande-a consertar o que seja lá quem tenha quebrado o feitiço dela, vou segurar o máximo que conseguir, mas ela tem que ir pra lá agora, me entende monsieur?
   -Entendi- ele afirma.
   -Homem esperto- digo soltando-o e voltando a correr.
    Em um pulo estou sobre as costas de um dos alazões das caçadora.
    Agarrando sua crina seguimos correndo pela floresta, desviando de galhos espinhosos espalhados pelas fronteiras do acampamento.
    Posso ouvir os guardas de Max marchando ao longe, no fim da Floresta de Idylla, rondando a fronteira de Sienna.
    Ao passo que nos aproximamos, pulo de suas costas e deixo-o correr de volta para as Caçadoras, me preparo para ataca-los.
    Eles se viram em minha direção, sem notar um ataque iminente, Max realmente precisa de soldados mais bem treinados.
    Derrubo-os com um mover de dedos.
    Marcho pelas ruas do vilarejo próximo do palácio sem ser notada.
    Assim que passo pelos portões do palácio, flechas vem em minha direção, zunindo por meus ouvidos, caio e rolo pelo chão, sujando minha jaqueta favorita.
    Faço uma careta e espero o momento certo para matar os sentinelas do palácio.
    Assim que consigo entrar, corro para o andar real, minhas botas de salto tintilham no chão de mármore branco.
    Abro a porta onde Max insistiu em guardar o corpo de Sabine e quando entro sinto que poderia cair ali mesmo ao ver a bela bruxa em um uniforme cinza chumbo real, os braços estendidos sobre o corpo da princesa, desfazendo o feitiço.
    -Marie?- ouso chamar, um sentimento estranho invadindo meu coração.
    Traição.
    Ela se vira e olha para mim com os olhos arregalados.
   -Lissa- cumprimenta Max com um sorriso doentio.
   -Contou para ele?- rosno para Marie Anne que me olha, culpada -saia de perto dela ou eu faço você e seu irmão virarem pó.
   -Não seja rude, ma chérie- zomba Max e eu juro que se minha prioridade não fosse salvar Sabine, eu arrancaria todos os dentes de sua boca com um alicate só para nunca mais vê-lo sorrir desse jeito    
   -Sinto muito- diz ela se pronunciando e eu solto uma risada estrondosa.
   -Mentirosa- digo -uma bela mentirosa.
   -Ele é meu irmão- ela diz, como se isso a isentasse da culpa -você não entende
   -Tem toda razão- concordo com um sorriso, deixando meu lado demoníaco vir a tona, afinal, que mal há deixar que ela me veja do jeito que eu realmente sou, enormes garras, chifres perfeitamente afiados e olhos que irão assombrar seus pesadelos pela eternidade, uma voz que faz qualquer ser que tenha um pingo de medo pela vida correr, afinal, eu sou a morte -não consigo entender por qual motivo eu confiei em você, garota mentirosa.
    Atiro um dos candelabros em sua direção, acertando seu braço, cortando-o.
    Ela me olha assustada, Max tenta vir até mim, mas seguro-o no lugar com magia, expando minha energia devastadora e vejo o quanto isso afeta Marie, que cambaleia com uma careta de dor, mas sem nunca para de desfazer o feitiço que mantém o corpo de Sabine ligado a sua alma.
    Avanço sobre ela enquanto Max me xinga de todos os nomes possíveis, usando a raiva do momento por ter sido traída por Marie.
    Acho que em uma coisa minha mãe estava certa, o amor, a paixão é um desperdício, afetou meu juízo desde a primeira vez que coloquei meus olhos em Marie. E eu achando que ele era nossa espiã, nunca esteve do nosso lado. Estava dando nossa informações para Max.
    Quantos segredos ela não expôs para ele, além de contar sobre Sabine?
    O como isso irá nos prejudicar quando Sabine voltar e eu morrer?
    E mesmo assim não consigo feri-la.
    Se fosse qualquer um, já estaria em pedaços, queimando no purgatório, sofrendo com minha ira. Mas, ela? Não consigo matá-la, não consigo nem matar Max, pois a machucaria profundamente, mesmo que saiba que é o certo.
    Pelo menos eu achava que ela pensava assim, antes de sua traição.
    Ela desvia de meus ataques com facilidade, não consigo nem encostar nela, tenho medo de me lembrar de cada suspiro, cada toque, cada beijo, cada segredo terem sido em vão, que nada era real, que não foi nada além de uma mentira bem calculada para ajudar Max.
    Derrubo o enorme lustre, os cristais se espatifam no chão, derrubando Marie, que fica com suas pernas presas entre o ferro e os cacos de cristal, e Max.
    Ela grita de dor e uso toda a minha força para não desviar o olhar ao ver sua perna quebrada e sangue jorrando do ferimento, formando uma poça vermelha no chão.
    Max tenta se arrastar até ela, mas o forço a ficar onde estar.
   -Lissa...- ela choraminga, suas mãos tremulas tentando estancar o sangramento -por favor, tem que entender...
   -Mas eu já entendi- digo com amargura, incapaz de olhar em seus olhos -escolheu seu irmão ao invés de mim, escolheu me trair, escolher mentir, não há mais nada que entender.
    -Temos uma guerra para vencer- ela diz e eu reviro meus olhos, mordendo minha bochechas para não xingá-la ou implorar para que fique comigo, antes de um estalo aparecer em minha mente.
    " -Teremos tempo- ela repete
   -Tem que ir agora, temos uma guerra para ganhar- encosto seus lábios nos meus por alguns segundos -você é uma soldada além de tudo, tem que deixar suas emoções de lado, não pode se apegar a mim, porquê eu não vou mais existir, você é uma Lendária, haja como tal.
    Marie se afasta e pega seus papéis, dividida entre mim e seu dever. "
    Por um segundo essas palavras parecem uma desculpara para ela ter se juntado à Max, eu acreditaria nisso caso eu não entendesse suas entrelinha.
    Ela é uma soldada além de tudo, tem que fazer de tudo para ganhar, sacrificar tudo, sacrificar a confiança de seu irmão, ganhar nesse caso, e sacrificar nossa relação.
    Traição.
    Mas não está nos traindo, está traindo ele.
  -Deixe-a como está, ela já está morta, não preciso mantê-la assim- diz ela calma, posso finalmente olhar em seus olhos -você não vai trazê-la de volta, Max tem que ser rei e você tem que deixar tudo como está, ela será apenas um peso morto para ele, é isso que você tem que entender.
    Rio e encaro Max  caído e me encarando com ódio.
    Talvez eu esteja me precipitando, afinal.
   -Eu vou trazê-la de volta- rosno, entrando em sua mentira.
   -Vá embora- ela diz, as mãos ainda pairando sobre o corpo sem vida da princesa, desfazendo o feitiço mesmo estando sangrando caída no chão
   -Eu vou trazê-la de volta- repito 
   -Não- ela sibila, fazendo com que eu fique presa contra a parede, Max ri enquanto encara nosso teatro.
   -É realmente poderosa irmã- diz ele com orgulho, ainda sim preocupado com a perna quebrada de Marie  -nem precisa de minha ajuda.
    Ela apenas sorri, convencida. O meu jeito de sorrir.
    Mordo a língua para não imitá-la.
    Marie é uma boa estrategista.
    Sabe como manipular Max para fazê-lo ceder e nos dar o corpo de Sabine sem uma briga, mulher ridiculamente linda e inteligente.  
   -Vai fracassar- digo, tentando entreter Max enquanto ela desfaz o primeiro feitiço e prepara o corpo de Sabine para receber a alma de volta quando chegar a hora, não sou uma boa atriz, mas sei irritar alguém como ninguém -acha que pode ser rei Maximus? Fico pensando no que Amara pensaria... sentiria vergonha, posso até senti-la se revirar no túmulo ao ver que os filhos se tornaram como o assassino dela...
    Max tenta manter o sorriso despreocupado mas posso ver por debaixo de sua máscara, está furioso e apavorado.
   -Vamos, Maximus, sabe estou certa- rio enquanto provoco-o -você não é melhor do que Milles, é como ele, só é uma versão mais cabeça dura e burra do seu tio, e seu pai Max... seu pai morreu por vocês, e agora... agora você é como Milles. Uma vergonha para os seus pai Max, uma grande e terrível vergonha.
   -Eu deveria matá-la- diz
   -Eu sou a morte Max, o diabo- digo com um sorriso debochado -não se pode matar o diabo.
    O rei se levanta e atira uma faca em minha direção, que se choca contra a parede vermelha.
   -Mas posso muito bem aprisiona-la.
   -Fique a vontade- sussurro com um sorriso -já fugi uma vez, posso fugir de novo...
   -Acabei- anuncia Marie e Max observa o corpo morto de Sabine, fecha os olhos e respira pesadamente, lançando um ultimo olhar para mim antes de caminhar lentamente até ela, se ajoelha e beija sua testa.
    Max ama Sabine, de um jeito doentio, mas ama, e isso é triste demais até para mim.
    Finjo estar derrotada, olhando com ódio para Max, tento olhar para Marie, mas não consigo vê-la machucada por minha culpa, então apenas me solto e corro para a floresta novamente.
    É difícil até de respirar, quase não me lembro da ultima vez que chorei, mas sei que foi a milênios, quando eu ainda era muito jovem e estava em meu corpo original
    Tinha pele morena e cabelos pretos cacheados lindos, igual minha mãe.
    Foi quando eu matei pela primeira vez, meu primeiro irmão assassinado por mim.
    Lembro de seus traços como se fosse ontem, nariz pontudo igual ao meu, esbelto como eu, jovem como eu.
    Não consigo me lembrar do nome dele, mas lembro do sorriso que abriu quando me viu, nem sabia que eu iria matá-lo.
    Se não fosse por esse seu sorriso estúpido, eu o teria feito sofrer, mas o matei da forma mais rápida que pude pensar.
    Só quebrei seu pescoço com um mexer de dedos.
    Sem tortura, sem sofrimento, sem dor.
    Chorei por horas agarrada ao seu corpo pequeno e gelado, sentindo culpa, antes de minha mãe ir atrás de mim e ameaçar me matar caso eu não fosse mais impiedosa, pois só assim eu poderia deixar meu pai orgulhoso.
    Nunca mais chorei depois disso.
    Cibele era a pior mulher que eu já conheci e não tenho orgulho de dizer que talvez eu esteja ficando pior que ela.
    Um nó se forma em minha garganta todas as vezes que a memória das pernas quebradas de Marie vem em minha cabeça, sou obrigada a encostar-me em uma das enormes árvores da Floresta de Idylla para tentar respirar.
    Sinto ódio de mim mesma quando um líquido quente e salgado escorre de meus olhos, o vazio em meu peito, a dor em meu fraco e impiedoso coração.
    Isso é o choro?
    Isso é a dor?
    Isso é amar?
    Já ouvi dizer que o amor e o sofrimento não eram muito diferentes.
    Nunca tive que me preocupar com seu verdadeiro significado, mas agora, aqui sentada aos prantos no meio de uma floresta, eu penso que talvez eu devesse ter me preparado mais para esse tipo de situação.                                                                                       
                 
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